[opinião] Quando a tão desejada inovação ainda não está pronta
Com certeza, nos últimos meses você ouviu de alguém ou leu em algum lugar que a Apple não está mais inovando como antes, e que a concorrência está “disparando na frente” em termos de novidades. Também pudera: a mídia e o marketing de algumas fabricantes iniciaram o ano apresentando tanta coisa que o consumidor não está nem tendo tempo de absorver direito. Telas dobráveis, leitores de digitais sob a tela… “Novidades” que fazem alguns alardear para o mundo (com tom quase orgástico) de que a Apple não é mais referência no mundo tecnológico.
Mas será que ser o primeiro a lançar uma coisa, mesmo que esta coisa ainda não funcione direito, é mesmo saudável para o mercado? Será que a Apple deveria também começar a lançar tudo o que lhe dá na telha, mesmo se a tecnologia ainda não estiver madura para o grande consumo?
Ser cuidadoso com o que entrega para seu consumidor significa não ser inovador?
O vício da inovação
Hoje em dia, a palavra da moda em tecnologia é Inovação. A geração atual, acostumada a grandes revoluções nas décadas passadas, quer tudoaomesmotempoagora e exige que a cada ano as fabricantes lancem novidades revolucionárias. Para eles, um novo iPhone ter o design parecido com o do modelo anterior é, por si só, uma clara demonstração de estagnação e falta de inovação.
O povo quer que as fabricantes comecem tudo do zero a cada ano; o que eles não lembram é que chega uma hora que isso começa a ficar impossível.
Então, quando aparece alguém que dá a eles o que eles pedem, como telas dobráveis ou sensores sob a tela, o vício é saciado, mesmo que no final não funcione direito.
Desbloquear o celular com dedos de estranhos
Uma das novidades que começou a aparecer no ano passado e que se popularizou nos últimos meses foram os leitores de digitais sob a tela. A ideia não é nova para nós que acompanhamos a Apple, pois este tipo de patente ela tem desde 2015. Ou seja, há material documentado de que ela já teve esta ideia há anos e que, possivelmente já até criou alguns protótipos funcionais disso. Porém, o resultado final provavelmente acabou não sendo satisfatório o suficiente para ser lançado ao público. Chegou um ponto que valeu mais a pena passar a investir na tecnologia de detecção 3D de rostos (o Face ID) que apresentava resultados mais precisos e confiáveis, do que gastar mais tempo em algo que ainda era falho.
Isso, claro, foi uma decepção para nós aqui do blog, que por muito tempo acreditamos que a Apple conseguiria lançar um Touch ID sob a tela.
Já a concorrência viu aí uma brecha que poderia atacar. Quem conseguisse lançar um sensor de digitais antes da maçã, teria moral para se autoproclamar melhor e mais inovador. A corrida para ver quem conseguiria primeiro foi grande.
Aí você vê notícias do tipo: “Tela do Nokia PureView desbloqueia até com caixa de chicletes”.
Video of the fingerprint sensor unlocking phone with a packet of chewing gum and someone else’s finger pic.twitter.com/jwY4ZG7uCh
— Decoded Pixel (@decodedpixel) 21 de abril de 2019
Por que acontece isso? A resposta parece ser simples: hoje em dia, a exigência por inovação está fazendo as fabricantes desesperarem-se por lançamentos que nem sempre estão prontos para o grande público.
Tela dobrável (ou quebrável)
É inegável que telas dobráveis são um sonho de consumo e todo mundo não vê a hora desta tecnologia se popularizar, como aconteceu com o mítico StarTac da Motorola. Eu tenho idade suficiente para lembrar o quanto aquele modelo era adorado por todos, por ser pratico e pequeno, sem atrapalhar o uso normal.
A indústria está estudando há anos este tipo de tecnologia, que promete um dia ser o futuro dos eletrônicos. Pouco antes do primeiro iPad ser lançado, lembro de ver na CES 2010 um protótipo de tablet que dobrava a tela. Ou seja, essa ideia tem mais de 10 anos, sem ainda ter se concretizado como realidade.
A Apple tem patentes com iPads e iPhones com tela dobráveis, no mínimo desde 2016. Até mesmo o Watch já foi cogitado para receber uma tela curva sobre a pulseira. Mas então por que ela não lançou ainda? Por que deixar a concorrência “passar na frente”, se ela já tem a ideia pronta?
Porque ter a ideia é uma coisa. Fazer ela virar um produto real pronto para o consumo em larga escala é outra coisa completamente diferente.
Quem conhece a Apple há mais tempo sabe que antes de lançar algo definitivamente no mercado ela testa, testa, testa, testa, e quando fica bom, ela testa mais um pouco, para ter certeza que aquilo realmente funciona de forma perfeita para ser consumido em grande escala.
Isso significa que a Apple é perfeita? Não, ninguém aqui está dizendo isso, e há diversos casos que mostram que até ela pode falhar. Para citar alguns, basta lembrar dos Mapas do iOS 6, ou do design do iPhone 6 que entortava com mais facilidade que os outros. Ou o iPhone 4, que foi testado, testado, testado sempre com uma capa grossa que o fazia parecer na rua com um iPhone 3GS, e que quando ficou pronto para a produção, perceberam ao tirar a capa que a mão do usuário causava mais interferência do que o normal.
Não interessa o que o marketing da empresa diga: a real inovação é aquela que faz diferença na mão do consumidor, não no papel. Por mais que o marketing da Apple tenha tentado nos convencer que o novo teclado Butterfly dos MacBooks era sensacional, só o uso demonstrou o quanto os usuários o odiaram.
Inovação sem melhoria significativa na vida real, não serve de nada.
Quando a Samsung e a Huawei anunciaram suas telas que dobram, muita, mas muita gente começou a declarar game over no mercado de celulares, como se aquilo fosse a maior revolução desde o lançamento do primeiro iPhone. A Apple estaria chegando ao fim e começaríamos uma nova era de celulares dobráveis. E onde muitos vieram comentar isso? Claro, em um blog sobre iPhone, onde mais?
Porém, desde o início de março nos parecia claro que, até aquele momento, a única coisa que se tinha era o marketing das empresas. Nenhuma delas deixou ninguém colocar a mão, apenas olhar os aparelhos em uma redoma de vidro. Então, como declarar algo “inovador” sem saber como ele se comportaria na vida real, nas mãos de consumidores comuns?
A Samsung foi a única que anunciou uma data de lançamento ao público: 26 de abril. A Huawei preferiu não especificar datas, para ter tempo de finalizar o projeto.
Com o lançamento próximo, diversos jornalistas receberam exemplares do Galaxy Fold, e o resultado foi um desastre. Telas deixando de funcionar depois de dois dias de uso, marcas na tela onde tem a dobra (como já se imaginava) e evidentes erros de projeto, como uma parte da tela que parecia uma película protetora, sem nenhum aviso de que aquilo não poderia ser retirado.
Era praticamente um protótipo mal testado que estava indo às mãos dos consumidores. E por um preço estratosférico.
Com toda a repercussão negativa, a Samsung decidiu adiar o lançamento público, afirmando que iria mudar o projeto para reforçar a tela. Não há uma data para isso acontecer.
Caso AirPower
Com todo este fiasco, é possível ver muitos tentando defender a Samsung, atacando a Apple. Mas isso é um comportamento de fanboy, que defende a marca a qualquer custo, tentando negar os fatos ao reforçar os defeitos de outros atores externos. Mas isso não é legal. Ser fanboy da Apple, da Samsung, de políticos, ou do que quer que seja, limita demais nossa forma de enxergar o mundo.
Há quem justifique, dizendo que “primeira geração de um produto sempre vem com bugs“. Calma lá! Bugs inesperados que aparecem somente com o uso é uma coisa completamente diferente de lançar um produto que muito provavelmente vai causar problemas para o consumidor. Há uma década que se experimenta telas digitais dobráveis; se ainda não encontramos no mercado deve haver algum motivo, não? Só deve lançar a empresa que realmente conseguir eliminar os problemas inerentes à tecnologia. Lançar antes disso é ato de má fé para se promover.
Outros dizem que “defeitos pontuais sempre podem acontecer em um ou outro aparelho. É normal na indústria“. Mais ou menos, né? Se foram distribuídos 30 dispositivos para jornalistas e destes, pelo menos 5 apresentaram problemas, isso significa uma taxa de 20%, o que é enorme para qualquer padrão.
E há os que afirmam “Pior foi o AirPower, que até impressão na caixa já tinha e foi cancelado“.
Este ano a Apple teve um grande projeto que foi obrigada a cancelar: o AirPower (leia mais sobre isso aqui). Mas na minha visão, são coisas bem diferentes por vários motivos.
Primeiro, não foi apresentado como uma coisa revolucionária. Era apenas um carregador por indução que carregava ao mesmo tempo 3 dispositivos diferentes. Nem mesmo os fanboys mais fanáticos ousaram chamar aquilo de inovação. Só mais tarde, depois do projeto cancelado, é que fomos descobrir que havia sim ali uma tentativa de fazer algo novo, que evoluiria a noção de carregamento sem fio. Mas não deu certo.
A Apple tentou, se esforçou, mas não conseguiu fazer a coisa funcionar de forma perfeita, decidindo então cancelar o projeto. Seu erro, na verdade, foi ter anunciado o produto antes dele estar pronto, o que provocou um vexame enorme. Se não fosse isso, seria igual a dezenas e dezenas de projetos semelhantes dentro dos laboratórios da maçã que ficam um tempo em desenvolvimento e depois são cancelados, sem a gente nem saber.
Já a Samsung não só anunciou como um produto pronto para o consumo, como estabeleceu uma data de lançamento. E só mudou de ideia quando aconteceu uma repercussão negativa da imprensa, com dispositivos apresentando defeito. Se não fossem os jornalistas, o produto iria para o mercado sem maiores testes.
Acho que dá para perceber a clara diferença entre estes dois casos, não?
Com tudo isso, todas as perguntas do segundo parágrafo deste texto ficam abertas. Estas são as dúvidas que você deve lançar para o próximo que vier até você dizer que outros estão “inovando” muito mais que a Apple.
Aliás, deixe eu aqui concluir que acho ótimo que outras empresas estejam experimentando coisas diferentes do que a Apple faz. O BDI sempre bateu na tecla que, durante anos, os concorrentes se basearam demais no que a maçã fazia, e isso é péssimo para a evolução, porque quando a fonte seca, ninguém mais evolui.
Então, neste ponto, é ótimo estarem experimentando coisas novas para fazerem a tecnologia que usamos evoluir. Só é preciso tomar cuidado para que as novas invenções realmente cheguem prontas para o consumidor. E isso foi um cuidado que a Apple sempre teve (apesar de às vezes falhar nisso).