Pretendo derrubar hoje um argumento muito usado por muitos que gostam e acompanham a Apple durante os anos. E deixo claro (caso você não me conheça) que eu sou um desses que gosta e acompanhou todos os lançamentos da empresa desde a volta de Steve Jobs à empresa, em 1996.
Durante décadas, a Apple encantou o mundo com uma fórmula simples e poderosa: ela não precisava ser a primeira — apenas a melhor.
Foi assim com o iPod, que não foi o primeiro MP3 player, mas redefiniu a forma como ouvimos música digital. Foi assim com o iPhone, que chegou quando BlackBerry e Nokia já dominavam o mercado, mas o reformulou por completo. Até o Apple Watch, lançado anos após os primeiros relógios inteligentes, hoje domina o segmento.
Este currículo invejável faz muitos argumentarem que a Apple “lança depois, mas lança melhor“. Mas será que essa estratégia ainda funciona em 2025, no contexto da inteligência artificial generativa?
Antes de entender os desafios da Apple com IA, vale lembrar como essa fórmula funcionou tão bem até aqui.
A fórmula da Apple: refinar e dominar
A filosofia da Apple sempre foi centrada em três pilares:
- Observar o mercado;
- Identificar falhas e limitações dos concorrentes;
- Lançar um produto refinado, com design superior e integração total entre hardware e software.

Essa abordagem fez a Apple triunfar em mercados saturados. Ela não precisa correr. Ela escolhe o momento certo para agir — ou, pelo menos, sempre escolheu.
Só que dessa vez, o jogo mudou — e talvez as regras também.
O problema: IA generativa é outro jogo
O problema é que a revolução da IA generativa não segue as mesmas regras.
Ela evolui num ritmo exponencial, alimentada por grandes volumes de dados, colaboração aberta, APIs públicas e ciclos de lançamento rápidos.
Ferramentas como ChatGPT, Gemini, Claude e LLaMA são atualizadas com frequência, impulsionadas por ecossistemas de desenvolvedores, empresas e usuários que testam, integram e adaptam as tecnologias em tempo real.
Nesse cenário, quem chega depois não encontra só um mercado mais consolidado — encontra uma comunidade já envolvida com alternativas livres, acessíveis e poderosas.
A Apple, até meados de 2023, era praticamente ausente desse debate. Não lançou um modelo próprio de IA generativa, não ofereceu APIs, não criou um laboratório público. Ficou assistindo.

Quer uma prova concreta de como a Apple ficou para trás? Basta olhar para a assistente que ela mesma criou.
A Siri como retrato do atraso
O caso mais simbólico dessa defasagem é a Siri.
Lançada em 2011 como uma das primeiras assistentes virtuais, ela foi ficando para trás diante da evolução da Alexa, do Google Assistant — e, claro, dos chatbots baseados em IA generativa.
A Apple Intelligence, revelada no ano passado durante a WWDC 2024, tenta mudar isso.
Ela é a tentativa de integrar a IA ao ecossistema Apple, reformula a Siri com ajuda do ChatGPT, e adiciona ferramentas como geração de imagens e resumos de texto.
Mas aqui está o ponto crítico: até agora, nada disso foi feito com tecnologia inteiramente da Apple. Foi preciso recorrer à OpenAI para garantir uma experiência minimamente comparável à concorrência.
E se o que antes foi uma vantagem competitiva, hoje estiver virando uma prisão?
O “jardim murado” é um problema?
A grande vantagem competitiva da Apple — seu ecossistema fechado e controlado — também pode ser seu calcanhar de Aquiles.
Enquanto Google e Meta adotam modelos open-source, e Microsoft expande suas integrações com o GPT por meio do Office e do Windows, a Apple tenta criar sua IA de forma interna e verticalizada.
Mas IA generativa não é como criar um novo iPhone. Ela depende de dados abertos, testes em larga escala e iteração contínua.
Ao manter tudo “dentro de casa”, a Apple corre o risco de se isolar num mercado que cresce justamente com base na colaboração.
A pressão do mercado e a resposta tardia
No final de 2023, o cenário ficou insustentável: enquanto Google, Microsoft e Meta anunciavam avanços concretos em IA generativa, a Apple permanecia em silêncio. O mercado começou a questionar se a empresa havia perdido o timing — e, pior, a visão.
Foi quando algo incomum aconteceu: na WWDC 24, a Apple mostrou sua versão de inteligência artificial, com muita cor, muitos títulos, muitas promessas… mas nada realmente novo.
O anúncio soou mais como um gesto para acalmar investidores do que como um movimento estratégico.

E ter apresentado funções que não estavam prontas representou uma quebra com o DNA da Apple, que sempre foi conhecida por “só mostrar ao mundo o que está pronto para usar”.
Ao ceder à pressão do mercado, a empresa entrou num terreno novo — e mais arriscado.
Agora vem a pergunta que não quer calar: com tudo isso em mente, a fórmula clássica da Apple ainda tem futuro?
A fórmula pode ainda funcionar — mas está no limite
A velha fórmula da Apple — esperar, observar e lançar com excelência — ainda tem valor, especialmente por sua capacidade de integrar hardware e software como nenhuma outra empresa.
Com uma base instalada de mais de um bilhão de dispositivos, seria ingênuo não acreditar que a Apple pode, sim, causar um impacto rápido se acertar na resposta.
Mas a era da inteligência artificial generativa impõe uma nova lógica, baseada em abertura, velocidade, dados e iteração contínua — tudo o que historicamente a Apple evita.
Nesse contexto, sua estratégia tradicional começa a parecer não apenas conservadora, mas potencialmente ultrapassada.
Se quiser continuar relevante no novo ciclo tecnológico, a Apple terá que revisar sua fórmula. Isso não significa abandonar seus princípios de privacidade e excelência — mas sim aprender a competir em um jogo onde ser fechado demais, ou lento demais, significa perder espaço de forma irreversível.
A Apple Intelligence é um bom começo. Mas não basta. A Apple precisa fazer mais — e mais rápido — se quiser não apenas participar, mas liderar a próxima revolução tecnológica.
