[opinião] Steve Jobs não queria uma stylus, mas isso não tem nada a ver com o Apple Pencil
Artigo originalmente publicado na edição 20 da Revista iThing. Texto de Marcus Mendes
Como todos vocês sabem, a Apple apresentou esta semana o novo iPad Pro, e com ele um novo lápis digital (o Apple Pencil) que servirá para desenhar e rabiscar na tela do novo aparelho, sem necessariamente ter que usar o dedo.
Não demorou muito para o Esquadrão da Memória Seletiva aparecer por aí relembrando uma frase dita por Steve Jobs durante o evento D8 da AllThingsD, em 2010: “Se você precisa de uma stylus, você já começou errado”. Mas o que ficou de fora, pra variar, foi o contexto.
Esta frase foi pinçada do meio de uma resposta a respeito da estratégia que a Microsoft vinha empregando nos últimos 10 anos com seus tablets.
O contraponto ali era muito claro: uma tela sensível ao toque humano é muito mais prática de se operar do que uma interface que você só consegue mexer com a ajuda de uma stylus.
E hoje sem dúvida isso segue como uma verdade absoluta. Imagine só se o iPad fosse operado só por meio de uma stylus, sem qualquer recurso de toque. Eu estaria escrevendo este texto de forma cursiva, e torcendo para o software interpretar cada palavra corretamente, em um processo que levaria muito mais tempo. Coisa de maluco.
Esta não foi a primeira vez que Jobs falou mal das canetinhas. No início de 2007 ele disse:
Quem quer uma stylus? Você tem que pegar, depois guardar, elas somem… Eca. Ninguém quer uma stylus.
Novamente, contexto: vamos voltar no tempo, para o dia em que o iPhone foi apresentado.
Até o início daquela manhã, a ideia de um telefone remotamente parecido com o iPhone era tema de filmes e livros de ficção. O mundo estava acostumado com os smartphones da época, com teclados físicos e stylus para tocar diretamente na tela.
E pouco a pouco, camada por camada, Jobs foi apresentando o iPhone e mostrando como era revolucionário. Primeiro, o telefone não tinha um teclado físico. Segundo, a tela era sensível ao toque. Terceiro, não seria operada por uma stylus, mas sim com os dedos.
Jobs promovia ali a solução da tela sensível ao toque como uma maneira muito mais prática e menos trabalhosa de interagir com um telefone do que com uma stylus. Simples assim.
E o que ele disse era tão verdade, que virou padrão no mercado inteiro.
Agora vamos responder à pergunta de Steve Jobs. Quem quer uma stylus?
A resposta é simples: muita gente! Milhões de desenhistas, diretores de arte, engenheiros e arquitetos (para nomear algumas profissões) utilizam uma stylus diariamente ao redor do mundo.
Antes de tablet ser sinônimo de iPad, esta palavra era usada para designar as famosas mesas digitalizadoras de marcas como a Wacom, em que uma caneta faz o papel de mouse, permitindo muito mais controle e abrindo infinitamente o leque de possibilidades de interação.
Existem algumas que além de identificarem a pressão do toque, também identificam inclinação, direção, etc. Tudo isso para ajudar artistas e profissionais a conseguirem reproduzir exatamente o que fariam com canetas e pincéis reais.
Esta é uma categoria de produtos feita para todos? É claro que não. É algo bastante específico, para uso sobretudo profissional.
No entanto, com a chegada de apps de desenho na App Store, era só uma questão de tempo até que canetas digitais compatíveis com eles chegassem ao mercado. O caso mais famoso é o do app Paper, da empresa FiftyThree, que vende uma stylus chamada Pencil, feita especificamente para seu app.
E o que isso tudo tem a ver com a Apple? É simples: o iPad Pro é voltado para estes profissionais que encontraram no tablet da Apple uma nova forma de trabalhar. À medida que apps de desenho, de arquitetura, de engenharia proporcionam aos profissionais de suas áreas uma nova forma de realizar suas criações, eles adotam estas novas ferramentas e abraçam suas inovações.
Por que deixar de investir nisso, só porque Steve Jobs disse há quase 10 anos que achava canetas digitais pouco práticas?
A stylus é apenas um de infinitos exemplos de frases antigas de Steve Jobs sendo usadas para tirar sarro de decisões atuais da Apple.
Quando o primeiro iPod compatível com vídeo foi lançado, o Esquadrão da Memória Seletiva não mediu esforços para desenterrar um episódio em que Steve Jobs havia defendido que a tela do iPod era muito pequena para rodar vídeos. E enquanto esse pessoal ria da contradição sem ganhar nada com isso, a Apple ganhava rios de dinheiro com aluguel de filmes e séries na iTunes Store.
Mudança faz parte da maturação no ciclo de vida de qualquer produto, pois os próprios usuários mudam a forma como eles interagem com o produto. Arrisco dizer que sem o iPod e o iPod Vídeo, dificilmente teríamos iPhones e iPads hoje em dia. E tenho absoluta certeza de que todo o conhecimento adquirido com os anos que a Apple passou vendendo iPods com telas pequenas está sendo aplicado hoje em dia no Apple Watch.
Quer mais uma contradição? Lá vai: Steve Jobs achava terrível a ideia de um iPad pequeno. Em incontáveis oportunidades ele afirmou que eles eram um erro, e cada uma delas foi relembrada (mais uma vez!) pelo Esquadrão da Memória Seletiva quando a Apple anunciou o iPad mini. E sabe o que aconteceu? Existiu um momento em que o iPad mini vendeu mais do que o iPad normal. Novamente, na época de lançamento do primeiro iPad, não fazia sentido um iPad pequeno. Ninguém nem sabia se o próprio iPad fazia sentido! Mas conforme os hábitos de uso foram se estabelecendo, a situação mudou, e novamente a Apple soube corrigir o curso para não deixar dinheiro na mesa (ou no bolso dos concorrentes).
É impossível viver com regras imutáveis. Nós não ouvimos as mesmas músicas que ouvíamos há 10, 20, 30 anos. Não vemos os mesmos programas de TV, não gostamos dos mesmos tipos de filmes, e não consumimos os mesmos produtos que consumíamos antes. Quando o assunto é hábito de consumo, é burrice utilizar um discurso do passado para insinuar uma contradição do presente. Aliás, esta é uma boa lição para tudo.
É burrice utilizar um discurso do passado para insinuar uma contradição do presente.
Quem conhece a historia de Steve Jobs, sabe que ele mudava de ideia diariamente. Se ele achava uma coisa em um dia, ele achava outra coisa no outro. Ideias que ele achava ruins passavam a ser geniais sem motivo aparente. Coisas que ele dizia serem ultrapassadas passavam a ganhar seu foco da noite para o dia. E esta mudança constante de opinião foi tão determinante quanto o pulso firme na hora de tomar uma decisão sem medo ou vergonha de cair em contradição.
Muito antes de iPhones e iPads, antes mesmo da Apple ser fundada, existia um cara que costumava dizer que era preferível reavaliar seus conceitos para se adequar às mudanças do mundo do que passar toda a sua existência com as mesmas opiniões engessadas e inevitavelmente ultrapassadas. E todos os críticos da Apple poderiam beber um pouco da fonte dessa Metamorfose Ambulante que se mostra, repetidas vezes, a melhor estratégia para dar certo nos negócios.
E na vida.