Tim Cook enfrenta o FBI em defesa da privacidade no iPhone
Toda a ação que a Apple toma hoje em dia acaba caindo na inevitável questão que todos sempre fazem: “Será que Steve Jobs teria feito isso?”. Mesmo que o ex-CEO da empresa tenha pedido para ninguém nunca fazer esta pergunta, ela acaba sempre vindo à tona, até porque todos esperam muito da Apple, sempre. Mas se há uma luta que é bem particular de Tim Cook (e provavelmente Jobs não a teria assumido com tanto afinco) é a que defende os direitos de todos à privacidade dos dados armazenados nos dispositivos da Maçã. Sua determinação é tanta que ele é o primeiro a desafiar publicamente o FBI e uma decisão judicial, para tentar gerar uma discussão sobre o assunto.
Decisão judicial
Tudo começou com a tentativa do FBI em acessar os dados do iPhone 5c de um dos atiradores do chamado “Ataque de San Bernardino“, que aconteceu em dezembro de 2015 na California. Segundo a polícia, seria através deste iPhone que os criminosos teriam organizado o plano de ataque. A Apple simplesmente respondeu que nem mesmo ela consegue acessar os dados contidos em um iPhone bloqueado, por causa da criptografia.
Nesta semana, uma decisão judicial determinou que a Apple deva fornecer ao FBI um software capaz de permitir que as autoridades acessem todos os dados contidos em um dispositivo iOS, como um iPhone ou um iPad. Isso, atualmente não existe, mas a decisão obriga a empresa a, de fato, criar um backdoor, uma porta de entrada que permitiria acessar os dados de qualquer iPhone. A Apple tem 5 dias para cumprir a sentença.
A resposta de Cook
Rapidamente, Tim Cook respondeu à decisão, em forma de carta aberta. Nela, ele clama que a toda a sociedade discuta melhor esta questão de privacidade, para que não fiquemos todos nas mãos dos governos e, ao mesmo tempo, de hackers que também teriam acesso aos backdoors. Confira a tradução da íntegra da carta:
Uma mensagem aos nossos clientes
O governo dos Estados Unidos exigiu que a Apple dê um passo sem precedentes que ameaça a segurança dos nossos clientes. Opomo-nos a esta ordem, que possui implicações muito além do processo judicial em mãos.
Esse momento exige uma discussão pública, e queremos que os nossos clientes e pessoas de todo o país entendam o que está em jogo.
A necessidade de criptografia
Smartphones, liderados pelo iPhone, tornaram-se uma parte essencial de nossas vidas. Pessoas usam-no para armazenar uma quantidade incrível de informações pessoais, como nossas conversas privadas, nossas fotos, nossa música, nossas notas, os nossos calendários e contatos, os nossos dados de informação financeira e de saúde, e até mesmo informações de onde fomos e para onde estamos indo. Toda essa informação precisa ser protegida contra hackers e criminosos que desejam acessá-las, roubá-las e usá-las sem o nosso conhecimento ou permissão. Os usuários esperam que a Apple e outras empresas de tecnologia façam tudo que possam para proteger suas informações pessoais, e na Apple estamos profundamente empenhados em guardar os seus dados.
Comprometer a segurança da nossa informação pessoal pode, no fim, colocar a nossa segurança pessoal em risco. É por isso que a criptografia tornou-se tão importante para todos nós.
Por muitos anos, temos usado criptografia para proteger os dados pessoais dos nossos clientes, porque acreditamos que é a única maneira de manter suas informações seguras. Tivemos até mesmo que colocar esses dados fora do nosso próprio alcance, porque acreditamos que o conteúdo do seu iPhone não é da nossa conta.
O caso de San Bernardino
Nós ficamos chocados e indignados com o ato de terrorismo em San Bernardino em dezembro passado. Nós lamentamos a perda de vidas e queremos que se faça justiça a todos aqueles cujas vidas foram afetadas. O FBI pediu-nos para prestar ajuda nos dias seguintes ao ataque, e temos trabalhado duro para apoiar os esforços do governo para resolver este crime horrível. Nós não temos nenhuma simpatia por terroristas.
Quando o FBI nos solicitou dados que estão em nosso poder, nós fornecemos. A Apple está em conformidade com intimações válidas e mandados de busca, como temos no caso San Bernardino. Também deixamos os engenheiros da Apple disponíveis para aconselhar o FBI, e oferecemos nossas melhores ideias sobre uma série de opções de investigação à sua disposição.
Temos grande respeito pelos profissionais do FBI e acreditamos que suas intenções são boas. Até este ponto, temos feito tudo o que está dentro de nosso alcance e dentro da lei para ajudá-los. Mas agora o governo dos Estados Unidos pediu-nos por algo que simplesmente não temos e, ao mesmo tempo, algo que consideramos muito perigoso de se criar. Eles nos pediram para construir um backdoor para o iPhone. Especificamente, o FBI quer que a gente faça uma nova versão do sistema operacional do iPhone, contornando vários recursos de segurança importantes, para que seja instalado em um iPhone encontrado durante a investigação. Nas mãos erradas, este software – que não existe hoje – teria potencial para desbloquear qualquer iPhone em posse física de alguém.
O FBI pode usar palavras diferentes para descrever esta ferramenta, mas não se engane: construindo uma versão do iOS que ignora a segurança desta forma seria inegavelmente criar um backdoor. E enquanto o governo pode argumentar que a sua utilização seria limitada a este caso, não há nenhuma maneira de garantir tal controle.
A ameaça à segurança de dados
Alguns argumentam que a construção de um backdoor para apenas um iPhone é uma solução simples, precisa. Mas ignoram ambos os conceitos básicos de segurança digital e o significado do que o governo está exigindo neste caso.
No mundo digital de hoje, a “chave” para um sistema criptografado é um pedaço de informação que desbloqueia os dados, e é tão seguro quanto as proteções em torno dele. Uma vez que a informação é conhecida, ou uma maneira de contornar o código é revelado, a criptografia pode ser derrotada por qualquer pessoa com esse conhecimento.
O governo sugere que esta ferramenta só possa ser usada uma vez, em um iPhone. Mas isso simplesmente não é verdade. Uma vez criada, a técnica poderia ser usada uma e outra vez, em qualquer número de dispositivos. No mundo físico, seria o equivalente a uma chave mestra, capaz de abrir centenas de milhões de fechaduras – de restaurantes e bancos para as lojas e casas. Nenhuma pessoa sensata pode achar isso aceitável.
O governo está pedindo à Apple para hackear nossos próprios usuários e minar décadas de avanços de segurança que protegem os nossos clientes – incluindo dezenas de milhões de cidadãos americanos – de hackers sofisticados e cibercriminosos. Os mesmos engenheiros que construíram uma forte criptografia para o iPhone para proteger nossos usuários, ironicamente, estão sendo condenados a enfraquecer essas proteções e tornar nossos usuários menos protegidos.
Não há nenhum precedente de uma empresa americana forçada a expor os seus clientes a um maior risco de ataque. Durante anos, criptologistas e especialistas em segurança nacional vêm alertando contra o enfraquecimento da criptografia. Fazer isso iria prejudicar apenas os cidadãos de bem e cumpridores da lei, que contam com empresas como a Apple para proteger seus dados. Criminosos e maus atores ainda iriam usar a criptografia, usando ferramentas que estão facilmente disponíveis para eles.
Um precedente perigoso
Em vez de pedir uma ação legislativa no Congresso, o FBI está propondo um uso sem precedentes da “All Writs Act of 1789” para justificar uma expansão da sua autoridade.
O governo quer nos fazer remover recursos de segurança e adicionar novos recursos ao sistema operacional, permitindo uma senha para ser introduzida por via eletrônica. Isso tornaria mais fácil desbloquear um iPhone por “força bruta”, tentando milhares ou milhões de combinações com a velocidade de um computador moderno.
As implicações das exigências do governo são de arrepiar. Se o governo pode usar a All Writs Act of 1789 para tornar mais fácil desbloquear um único iPhone, ele teria também o poder de acessar o dispositivo de quem quer que seja e capturar seus dados. O governo poderia estender esta violação de privacidade e obrigar a Apple a construir um software de vigilância para interceptar suas mensagens, acessar seus registros de saúde ou dados financeiros, rastrear sua localização, ou mesmo acessar o microfone ou a câmera do seu telefone sem o seu conhecimento.
Opor-se a esta ordem não é algo que nós tomamos de forma simples. Sentimos que devemos expor publicamente o que vemos como um abuso do governo dos EUA. Estamos desafiando as exigências do FBI com o mais profundo respeito pela democracia americana e amor pelo nosso país. Acreditamos que seria do melhor interesse de todos voltar atrás e considerar as implicações.
Embora acreditemos que as intenções do FBI sejam boas, seria errado para o governo forçar-nos a construir um backdoor em nossos produtos. E, finalmente, temos medo de que essa decisão possa prejudicar as liberdades que nosso governo se destina a proteger.
Tim Cook
Nenhuma outra empresa norte-americana desafiou desta forma uma decisão judicial provocada pelo FBI. O povo norte-americano, por costume, tende a apoiar atos contra o terrorismo, o que já fez governos abusarem bastante da privacidade com essa desculpa. O que Tim Cook está fazendo (e com razão, segundo nossa opinião) é algo bem corajoso, na defesa dos direitos que todos nós temos. Afinal, o que acontece lá acaba se refletindo no resto do mundo.
Parabéns, Tim Cook.