Análise

Comercial do Google incentiva crianças a não aprenderem a escrever textos pessoais

Eu me pergunto o que está acontecendo com a atual geração de publicitários não só no Brasil, mas no mundo. Será que as novas tecnologias estão emburrecendo os jovens?

Na última semana, a Google se viu no centro de uma controvérsia após exibir um anúncio durante os Jogos Olímpicos de 2024 para promover sua IA, Gemini.

O anúncio, intitulado “Dear Sydney“, buscava ilustrar como a inteligência artificial poderia ser usada para ajudar uma jovem admiradora a escrever uma carta para sua ídola, a atleta olímpica Sydney McLaughlin-Levrone.

No entanto, a recepção do público foi tudo menos positiva, levando a gigante da tecnologia a retirar o anúncio de circulação após uma enxurrada de críticas.

O comercial “Dear Sydney”

O comercial mostrava uma jovem fã que desejava expressar sua admiração pela atleta norte-americana Sydney McLaughlin-Levrone através de uma carta.

No vídeo, em vez de incentivá-la a escrever a carta com suas próprias palavras, seu pai sugere que ela use a IA Gemini para redigir a mensagem, com o objetivo de “fazer tudo certo”.

A ideia central do anúncio é destacar a capacidade da IA de ajudar em tarefas do cotidiano, como a escrita, promovendo assim o uso do Gemini em momentos que requerem precisão e cuidado com as palavras.

Mas o que choca é ver uma criança em fase de crescimento e aprendizado procurar uma tecnologia que faça tudo para ela, sem esforço.

YouTube video

A reação do público

Apesar das supostas boas intenções por trás do anúncio, a reação do público foi amplamente negativa.

Muitas pessoas viram a campanha como um exemplo do que há de errado na integração excessiva de IA na vida cotidiana, especialmente em atividades que envolvem criatividade e expressão pessoal.

Linda Holmes, podcaster da NPR, resumiu bem a indignação generalizada ao criticar a ideia de usar uma IA para escrever uma carta de fã, considerando-a “ridícula” e prejudicial ao desenvolvimento das habilidades de escrita de uma criança.

Esse comercial que mostra uma criança usando IA para escrever uma carta de fã para sua heroína É HORRÍVEL. Obviamente, existem circunstâncias especiais e pessoas que precisam de ajuda, mas, de maneira geral, como uma história do tipo “olha que legal, ela nem precisou escrever nada sozinha!”, isso É HORRÍVEL. Quem quer uma carta de fã escrita por uma IA?? Eu garanto que, se puderem, as palavras que seu filho pode juntar serão mais significativas do que qualquer coisa que um prompt possa gerar. E por fim: uma carta de fã é uma ótima maneira para uma criança aprender a escrever! Se você encoraja as crianças a correrem para a IA para soltar palavras porque a escrita delas ainda não é boa, como elas vão aprender? Sente-se com seu filho e escreva a carta com ele! Estou simplesmente enojada com tudo isso.

Outros críticos argumentaram que o anúncio projetava uma visão distópica, onde a comunicação humana é cada vez mais mediada por tecnologias que removem o toque pessoal e autêntico.

A crítica do Washington Post destacou a desconexão entre a mensagem do anúncio e as expectativas do público em relação a momentos de conexão humana, chamando-o de “muito ruim” e sugerindo que assistir ao comercial era uma experiência quase irritante.

Este comercial me faz querer jogar uma marreta na televisão toda vez que o vejo. É um daqueles anúncios que te faz pensar, talvez a evolução tenha sido um erro e nossos ancestrais nunca deveriam ter deixado o mar. Isso pode ser uma hipérbole leve, mas apenas leve!

Se você não viu este anúncio, você está levando uma existência abençoada e eu gostaria muito de trocar de lugar com você.

A resposta da Google

Diante da enxurrada de críticas, a Google decidiu retirar o anúncio das transmissões dos Jogos Olímpicos e das plataformas online, incluindo o YouTube.

Em uma declaração, a empresa mencionou que, apesar dos testes de exibição iniciais terem sido positivos, a resposta do público após o lançamento indicou a necessidade de uma reconsideração.

A empresa também desativou os comentários no vídeo do anúncio, possivelmente para conter a maré de feedback negativo.

Declínio geracional?

Certo, a Google disse que “os testes de exibição” (aqueles que acontecem com pessoas selecionadas do público alvo antes do comercial ir ao ar) tinham sido positivos. Mas precisa fazer testes para entender que essa era uma péssima ideia?

Essas mentes brilhantes que criaram este comercial não sabem sobre as discussões que estão acontecendo ao redor do mundo sobre o quanto a IA tem o poder de “emburrecer” as pessoas se não for moderada? Em que caverna (ou bolha) estes publicitários vivem???

Há uma linha tênue entre mostrar os benefícios da IA e alienar um público que valoriza as interações genuínas e pessoais. E se os profissionais de comunicação não se dão conta disso, acabam passando a mensagem errada.

Claro, estou aqui escrevendo sem malícia, partindo do ingênuo pressuposto de que não seria intenção das Big Techs emburrecerem os usuários para se tornarem eternamente dependentes de suas IAs…

E que fique claro que o que está sendo discutido aqui não é um ataque ao Google particularmente, mas à burrice geral que parece assolar o mercado publicitário.

Afinal, vamos lembrar que não faz muito tempo tivemos aquele comercial do iPad, que destruía diversos instrumentos de criatividade humana e sugeria que o iPad substitui todos eles…

Se os nossos publicitários, formados na era pré-IA, já estão cometendo erros desse tipo, o que dizer da próxima geração criada sob a égide (e comodismo mental) da inteligência artificial?
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